segunda-feira, 1 de junho de 2009

O DECIMO-PRIMEIRO MANDAMENTO

Quando 20 pessoas saem da Europa de férias, juntas, preocupadas apenas em jogar bola e fazer o bem, é hora de agradecer o futebol, nossa reza disfarçada cotidiana.

Por Leandro Iamin e Kadj Oman

São 16 horas do dia 25 de maio, quarta-feira de sol e chuva em São Paulo. Pela TV, todo mundo que ama futebol e não está preso no trabalho assiste à Final da Copa dos Campeões da Europa. Manchester e Barcelona fazem o duelo mais importante da região mais próspera economicamente do futebol, e é de se imaginar que todos os olhos estejam voltados para lá.

Mas um grupo de cerca de 20 pessoas, contendo ingleses e escoceses, inclusive torcedores do Manchester, está dividido: parte assiste ao jogo, parte se encontra entrando num avião, no Aeroporto de Guarulhos, partindo de volta para Bristol, Inglaterra, a oeste de Londres. Todos eles amam futebol. Eles dispensaram a Final. Eles formam um time de futebol. Eles passaram dez dias no Brasil por causa do futebol.

Estamos falando do Easton Cowboys and Cowgirls. Uma coletividade semelhante a um time de várzea brasileiro, que soma à prática do futebol ações políticas, como o discurso anti-racismo e anti-facismo. Nascidos em 1992, eles só queriam jogar bola. Mas Bristol é uma região multicultural, recebe gente de muito lugar diferente, e aí está o embrião da ideologia dessa rapaziada.

O Clube Easton, após fundado, começa a ser inclusivo naturalmente, passa a crescer e oferecer recreação para crianças, famílias, e seus integrantes levam a sério a proposta de buscar a liberdade como conceito social ligado e explicado pelo futebol. Lá na Inglaterra, passam a receber visitantes de outros lugares, de outros países, de outros continentes, em festivais de futebol e debates pensantes. Organizam inclusive Copas do Mundo Alternativas com estes visitantes - desde 1998. E passam, num segundo momento, a serem eles os visitantes.

Em 2008, um integrante do Easton Cowboys achou pela Internet um vídeo de uma banda de música composta por rockeiros-boleiros, chamada Fora de Jogo. Essa banda é composta pelas mesmas pessoas que foram o embrião de um time de futebol de várzea paulistano, chamado Autônomos, existente desde 2006. Os ingleses mandam um alô em um e-mail que demora 6 meses para ser lido. Mas que é respondido com entusiasmo. O Autônomos tem os mesmos interesses futebolístico-sociais do Easton.

Então, após viagens para Palestina, México e África do Sul, a delegação de Bristol agenda viagem para o Brasil. Aos rapazes do rubro-negro da Lapa, a incumbência é recebê-los e montar um cronograma de atividades, em campo e fora dele. Um privilégio que dará muito trabalho...


Com que grana, cara-pálida?

É realmente insólito que um grupo viaje tão longe para jogar bola. “Desocupados ou ricos”, pode-se pensar. Na verdade, os Cowboys usam dinheiro do próprio bolso, mas conseguem renda através de um bar cujo dono possui os mesmos princípios, e vale sublinhar que princípio, nesse caso, não é ser “punk”, ou ser “anarquista”, ou ser “de esquerda”. Falamos do princípio da fraternidade, do anti-racismo de fato, da real luta por trás de tudo, chamada guerra de classes. Com shows de música, doações, vendas de camisas e outros lucros pequenos, eles conseguem resolver a parte financeira. Depois disso, tudo que precisam fazer é tirar férias ao mesmo tempo.

A trupe marrom-e-branca (as cores do alemão St. Pauli) desembarcou com 17 homens e duas mulheres. Recebidos pelo Autônomos, foram direto ao campo de jogo, num forte amistoso vencido pelos brasileiros por 4 a 2. No mesmo final de semana, participaram de um evento anarquista com muito futsal. Também foram torcedores ilustres nas partidas do Autônomos, e também das Autônomas, o time feminino. Viajaram ao Rio de Janeiro, e fizeram amistoso na areia de Copacabana (com direito a um surreal desafio extra contra integrantes da Gaviões da Fiel, que lá estavam para Fluminense x Corinthians).

Conheceram o Maracanã nesse mesmo Fluminense x Corinthians, e também o Bruno José Daniel em dia de Santo André x Flamengo. Enfrentaram outros times de várzea, as meninas fizeram amistoso feminino, futebol, futebol, futebol, futebol. E política. Todos eles participaram, também, de debates em universidades e de um programa de rádio, além de conhecerem mais de perto algumas das realidades do Brasil pobre.

Muitas bandeiras em uma só

Steve não entra em campo. Tem um cabelo punk, um aspecto nada vivaz, fala de forma torta, mas é um exemplo enorme da capacidade de integração do Easton. Ele morou 5 anos na rua, por resultado de nunca se encontrar socialmente em seu meio. Mas no futebol, ou melhor, no futebol que o Easton lhe apresentou, ele encontrou seus valores em ação, isso é, um grupo plural e interessado nas idéias de igualdade, sem hipocrisias.

E quando lembramos da pluralidade do time e de Charlie, o descendente de filipino que é o craque do time, aparece Kaz e nos engole. Muito alto, voz de locutor, um senhor, um doce de pessoa. Descendente de iraquiano. Emotivo, chorou com o Cristo Redentor, contemplou por minutos o mar, e explica que, numa vida intranquila que ele tem, o Easton é o que lhe faz ter 18 anos de novo.

Não existem histórias muito diferentes quando o assunto é explicar o amor pelo futebol. O amor desse pessoal, no entanto, encontra eco naquilo que nosso esporte querido tem de mais generoso, e que, infelizmente, Robinho e Cristiano Ronaldo jamais ouviram falar. Nas partidas do Easton, abriu-se uma faixa: "Unidos contra o racismo". Não se quer salvar o mundo no Easton. É uma faixa, mas é mais, é um gesto, uma postura. É simples como tem que ser.

Parte do dinheiro trazido foi apenas para se fazer o bem, para se investir em algo social. É o futebol como competição em campo para representar a oposição ao mundo que estimula a competição de gêneros, raças, classes sociais, países.

Jock, o treinador do Easton, é escocês, tem os joelhos destroçados, e foi embora com recordações de Palmeiras e de Corinthians na bagagem. Jack Daniels, zagueiro e capitão de nome sugestivo, também. Lally, a talentosa menina que aprendeu a jogar para poder brincar com seus irmãos na infância, vestiu uma camisa do São José. E Paulius, o lituano do FC Vova, time nos mesmos moldes do Easton localizado em Vilnius, capital da Lituânia, e que veio ao Brasil "emprestado" aos Cowboys, levou consigo uma camisa do Santo André.

Ou melhor, Paulius não foi-se assim, tão convicto. Figuraça, o rapaz agregou-se à delegação inglesa e veio mais para ver o cenário punk, por sua banda de música. Mas, agora, só pensa em voltar ao Brasil: tudo culpa de uma garota bonita que o tirou da rota. O único que durante toda a viagem cravou seco: sou palmeirense. De novo, culpa da garota.

See you in England

O futebol leva valores à sociedade, sempre levou. O futebol que constrói arenas na Europa por compulsão pode ser tão perigoso quanto a especulação imobiliária que mata um pouco a cada ano o futebol de várzea, nosso capital intangível. O futebol é uma moldura, um exemplo, uma proposta lúdica de representação política, das coisas que devemos fazer e das posturas que devemos ter.

Quando alguém diz que futebol é só uma atividade opulenta, para doentes verem caras "correndo atrás de uma bola", consegue, ainda que sendo tão raso, achar um ou outro argumento, por exemplo, numa Final de Copa dos Campeões, mesmo com sua campanha (vaga) sobre fair play e sua cruzada (inconsistente) contra o racismo.

Mas aí temos o privilégio de ver duas dúzias de pessoas gastando suas férias e suas economias para conhecer nossa mais simples realidade. Não encheram o saco de ninguém com nenhum “papo-cabeça” sobre ideologia. Não era esse o caso. O Easton é a postura do Easton. Sacrifício, fraternidade, boa-vontade, bondade. E amor por futebol, nosso esporte querido, que precisa ser lembrado em um anexo de nossas orações diárias.

Os cowboys ingleses aqui estiveram para nos ajudar a estabelecer um décimo-primeiro mandamento: não macular o futebol nem subestimar sua essência e seu poder inclusivo. Homens, mulheres, crianças, senhores, senhoras e uma bola.