terça-feira, 16 de dezembro de 2008

FLAVIO GOMES - UM LABORATÓRIO PARA O MUNDO

MINHA OUTRA PAIXÃO – FLAVIO GOMES

“Essa série tem a intenção de entrevistar jornalistas esportivos, sobre uma paixão não-jornalística e não-esportiva”

* * * *

"Paixão, mesmo, acho que não tenho nenhuma" .

Eu procurei o escritório de Flavio Gomes na Avenida Paulista com uma suspeita em mente. Será que o jornalista mais viajado da paróquia, tão nitidamente apaixonado por automobilismo, lusitano doente, não tem nenhuma outra paixão na vida? Será que o desinteresse em cultuar alguma coisa é justamente o seu barato, ou trata-se de uma chata personalidade pacata?
Sou recebido pelo baixinho batuta, e entro em seu escritório amplamente decorado. Sento numa poltrona amarela, enquanto ele, ao telefone, discute sobre pistas e carros favoritos para cada pista. Na parede, o bico de um antigo carro de Fórmula Ford, miniaturas às dúzias, quadros com fotos e reportagens, credenciais, cacarecos de significado meramente pessoal. Muito bom gosto em tudo, nas cores, na bagunça, tudo arejado, computadores que dão vontade de sentar pra escrever. E Flavio Gomes, ainda menor no meio de sua mesa com informações, todas elas aparentemente úteis, com destaque ao laptop, o Marlboro e o celular, solta um prático “então vamos lá?”.

Fala com categoria, tem um semblante jovial e simplista demais para suas argumentações. Após 5 minutos, o que eu concluo é que a paixão por carros é tão arrebatadora que ele na verdade não sente necessidade de ser, ou se dizer ser, aficionado por outras coisas. Claro, suas paixões elementares, como seus dois filhos, não contam, ainda mais porque não parece ser o tipo de coisa que Flavio se sente à vontade pra falar. Sinto um humor na linha de raciocínio de Gomes. Ele deve se divertir muito com a própria imaginação. Chegou seu almoço, um macarrão num pote nem tão apetitoso, mas ele garante ser muito bom (pene com aspargos e presunto cru do Ritz, "uma das coisas desta cidade que eu adoro"). Abrir o saco de queijo ralado com os dentes não é lá muito prático. Mas almoçar sem descansar a cabeça, e sem fazer digestão aponta que Flavio Gomes é um ser adaptado à vida implacável de São Paulo. E eis a paixão, a sua outra paixão possível, a paixão que o "desapaixonado" encontrou em seu peito: a cidade de São Paulo.

Antes de ser o multimídia (de araque, segundo ele) que atua, entre outros muitos lugares, na ESPN Brasil, Rádio Eldorado, Lance! e iG (onde tem seu blog e seu empreendedor portal), Flavio teve uma trajetória ousada, coisa de gente grande, sem trocadilhos. Fez apostas, passou por Folha, Placar, Jovem Pan, Bandeirantes e lançou o livro O Boto do Reno, em 2005, um Diário de Viagem que tem de tudo, até São Paulo. Nasceu em 1964 e passou os primeiros anos de vida em Moema (foto, em sua casa que resiste até hoje). Em 72, aos 7 anos, em razão do trabalho do pai, foi morar no Rio de Janeiro. Após 3 cariocas anos, em 75 ele volta a São Paulo e em 78 vai morar em Campinas. Trabalho nômade, o de seu pai. No interior paulista foram mais 4 anos. Seguindo os passos do irmão que correu pra Sampa, Flavio sabia que a carreira que sempre sonhou estava na capital, e desde 1982 Gomes não muda mais de cidade. "Passei muitos anos viajando o mundo, poderia morar em muitos lugares, e nunca quis sair de São Paulo.

Ser criado em lugares diferentes ajuda algumas de suas compreensões e aspirações. O momento político era importante - Flavio é de uma entressafra que não tinha idade pra lutar contra a ditadura, e que se formou justamente no fim da negra fase. O time de futebol também pesava, afinal, foram exatas 100 vezes que ele saiu de Campinas só para ver a Lusa no Canindé. Tinha também o ambiente universitário, os empregos... Está aí um pedaço do papo com Flavio Gomes. Foi uma conversa tão gostosa em seu escritório, que é como se estivéssemos em uma mesa de bar. Confira:

LI: O que contava para você quando decidiu-se por São Paulo?

FG: Tudo contava. A Portuguesa contava muito pra mim. Nos 4 anos que vivi em Campinas, eu vinha sempre aos jogos da Lusa e anotava as partidas. Foram 100 jogos. Isso era uma paixão forte, então, contava bastante. Tinha a parte política também. Tancredo se elegeu em 85, mas em 79 já era claro que o governo militar estava dando os últimos passos. Eu nunca tive uma vida política muito ativa, mas eu queria ver aquilo de perto. E outras coisas me atraíam, como o ambiente universitário, o político, a criação do PT... Isso tudo acontecia aqui, e não em campinas, ou outra cidade menor ainda. Minha intenção era viver isso, aqui.

Sua paixão por carros, ou ter um carro, te ajudou a descobrir São Paulo?

Ganhei um carro aos 18, e isso ajudou quando podia ir a um jogo da Lusa de carro, por exemplo. Só para coisas assim, de independência, e não para descobrir a cidade. Eu andava muito e sempre de ônibus e metrô. Quando passei a andar de carro, as minhas artérias na cidade eram as mesmas que eu tinha no transporte público. Mas me dava autonomia. Eu não descobri São Paulo fisicamente de carro. Carro nunca foi pra mim um símbolo de hedonismo, para comer mulher e me exibir. Era um facilitador de coisas práticas.

Interlagos é um bairro que você gosta?

Interlagos não é meu bairro predileto. O autódromo, sim, é o lugar que eu mais gosto. O bairro, não. Interlagos tem uma história e um nascimento interessantes - o bairro e o autódromo. Na década de 40, aquilo ali era deserto, e não caberia um autódromo daquele tamanho em outro lugar que não aquele.

O que é pior pra São Paulo: a classe media e sua mentalidade ou a periferia e sua pobreza prática?

Na balança, o mais problemático... empata. A violência de algumas periferias se equipara à estupidez da classe média. Eu não sou freqüentador da periferia, São Paulo é diferente do Rio de Janeiro, onde a classe média vai aos morros. Em São Paulo, fisicamente, a periferia é mais espalhada em relação às regiões centrais. Então, não tenho conhecimento da realidade da periferia, minha realidade é muito urbana, é onde “vale o rodízio”, e é um pouco a de toda a classe média, à qual eu pertenço. Há muito mais preocupação na periferia em melhorar as coisas, com comunidades ativas, ONGs, do que na área nobre, que já está perdida e habitada por babacas que não querem melhorar nada.
Babacas?

Te dou um exemplo. Um rapaz que eu conheço, certa vez, enfiou a Mercedes no buraco, e saiu xingando a cidade, o prefeito, tudo, porque tem buraco. Eu, que sei que ele faz uma manobra com o negócio dele, para pagar imposto em locais mais baratos, como Cotia, disse a ele que se ele caísse num buraco em Cotia, ele poderia reclamar da cidade. Aqui, não, porque aqui ele não pagava nada, e eu sim. A classe média tem muito disso. Não gosto da classe media daqui. Tenho bronca dela. Ela se comporta de um jeito em Paris, em Londres, e de outro aqui. Aqui, ela é espaçosa, desrespeitosa, tem raiva do motoqueiro, do mendigo, do pobre.

Qual o horário que São Paulo lhe é mais gostosa?

Adoro São Paulo de madrugada, bem tarde, o centro de madrugada, quando você enxerga a cidade ao invés de carros, e quando tem menos barulho. De manhãzinha, a mesma coisa. São Paulo é charmosa nesse horário. A madrugada é silenciosa. A cidade se esconde quando todos estão acordados.

Viver viajando pra fora do país te ajuda a interpretar São Paulo?

Morar em São Paulo é que me ajuda a interpretar o exterior! São Paulo não é uma cidade para iniciantes, amadores. Se você consegue viver em SP, vive em qualquer lugar do mundo. Sempre usei muito minha experiência de São Paulo para me encaixar em vários lugares do mundo.

Onde encontramos o Flavio Gomes de folga?

Olha, não tenho um programa específico. São Paulo tem isso, também. Qualquer dia, qualquer hora, você pode escolher um programa. No meu prédio de trabalho tem um cinema, e se eu me encher e quiser ver um filme às 14h, vou. Em São Paulo tem todo tipo de programa o tempo todo. E pelos meus horários indefinidos, eu não costumo repetir meus programas. É certo dizer que na minha folga, estou "por aí".

Dá pra imaginar como seria o Flavio Gomes "Carioca"?

Eu acho que, se tivesse vivido sempre no Rio, eu seria jornalista do mesmo jeito (sua primeira lembrança da profissão é, quando criança, de um jogo de tabuleiro onde o jogador era um repórter que tinha de cobrir incêndios, acidentes e assassinatos). Eu, carioca, seria mais envolvido com os problemas da cidade do que me envolvo com os daqui. O contato com os problemas do Rio é mais constante, próximo, e o Rio é uma cidade que eu acho que precisa ser cuidada, pega no colo, e não vejo isso em São Paulo. São Paulo se vira sozinha, se auto-conserta, como o meu Lada (foto), que se quebra e conserta-se porque sabe que eu não vou cuidar dele. Em São Paulo, a mesma coisa. Eu seria um pouco mais "Gabeira".

Você provavelmente iria enfartar com Jacarépaguá...

Eu me envolveria mais com Jacarépaguá, faria alguma mobilização - não resolveria nada, mas faria - contra aquilo (O autódromo foi mutilado e condenado em nome de obras para o Pan-2007). Faria mais do que fiz, por exemplo, quando mutilaram Interlagos. Mas mutilaram Interlagos porque falaram "ou faz isso, ou não tem F-1." São Paulo tem essa faceta muito prática, também.

Qual carro representaria bem São Paulo? O Lada?

Não... O Lada, definitivamente, não, apesar do fato de ele se auto-consertar. Um carro... Não tem. Nenhum. Ou todos. Seria um baita mix.

E em que lugar fora do Brasil você se sente em São Paulo?

Olha, onde me sinto como em São Paulo é em Bangkok. Lá você tem essa mesma sensação de que, apesar de toda a bagunça, está tudo sob controle.

E quando a cidade está sob controle pra você? Quando estás na Av. Paulista?

Saber que eu estou com São Paulo em volta, aqui na Avenida Paulista, é fundamental pra mim, sem dúvida. Não sei se pro meu processo criativo, mas pra minha atividade como um todo. Acho que a Avenida Paulista está para São Paulo da mesma forma que São Paulo está para o Brasil. Ela carrega muito da essência da cidade.

Se você tivesse o poder, para quem entregaria a condução dessa cidade?

Difícil... A pessoa que mais entende essa cidade, seu mecanismo, sua essência, pra mim, é a Soninha. Mas, veja só, eu não votei nela. Acho que, na prática, não haveria meios de ela exercer isso na prefeitura. Mas ela é a pessoa que eu escolheria como a que mais conhece a cidade.

9 comentários:

Anônimo disse...

Sensacional, a entrevista. Meus parabéns. Perguntas muito bem-pensadas, compeltamente diferentes das que eu pensava que viriam. Me incentivou a ler as outras entrevistas

Anônimo disse...

Sensacional, muito boa a entrevista. Parabéns. Pena que acabou, mais ficou muito boa.

Carmem Daniella disse...

Leandro, meu caro, você faz entrevistas maravilhosas. Seu segundo escolhido é, simplesmente, "o cara". Como jornalista sou fã do Flavinho e agora fiquei sua fã também. Como disse o Tiago, fiquei com a sensação de "já acabou?? Conta mais!!!"
És um iniciante?? Nem parece!!!! Parabéns e sucesso!!!
Grande abraço!!!

Marcelo Tuvuca disse...

Grande entrevista, grande texto, meus parabéns pela iniciativa interessante e inusitada.

Fabio Tust disse...

Que legal a entrevista! Seria mais legal se fosse mais extensa. Parabéns ao Marcelo e ao Flávio!

lada disse...

O FG é um cara curioso e genial.
Parabéns pela entrevista, com certeza o vosso blog vai virar novo point!

Anônimo disse...

Muito Show....
Parabens!!

Greek disse...

Flavio Gomes é um dos melhores pra falar sobre carros! achei teu blog atraves do dele!

como é sobre futebol, já te adicionei no meu, que é o únio no mundo falandos sobre o Olympiacos Pireus da Grécia em portugues!

entra la!
http://olympiacosfc.blogspot.com

Stelios!

ortsiger disse...

Li seus posts desde Agosto.
Muito legal seu blog, principalmente quando fala de colecionar álbuns, saber as ordens das cores nas bandeiras, sobre as camisas memoráveis (Alemanha/90)
Sou de 81 e tenho um caderno até hoje com os desenhos das camisas das seleções de 90 hehehe, vou scannear e lincar depois no meu blog.
Parabéns !