quarta-feira, 19 de novembro de 2008

JORNALISTA COMEÇA AOS 12

1995. Um improvável estádio de futebol aparece na tela da TV, e não dá pra compreender aquela fina faixa de sol que rasga o gramado. Em campo, Palmeiras e Internacional de Limeira estão prontos. É estranho, mas as torcidas, atrás dos gols, são apenas vultos. O som também está misterioso, assim como toda a transmissão. É um som sem som, uma imagem sem imagem. Uma coisa bizarra.

Facilmente explicada, porém.

Não há jogo, na verdade. Nem transmissão. Não nas formas que a gente conhece. Existe uma criança, aos 10, e isso basta. Ela jogou as figurinhas do álbum para o tapete, e com gols e uma bolinha de plástico, estava simulado um jogo de futebol. Um garoto é um mundo. E o jogo imaginário, do campeonato imaginário, nem era o mais importante.

A criança vinha andando agachada lá de fora do quarto, com os olhos cerrados. Como se fosse um efeito especial da TV. O sol que escapa da janela é comentado pelo repórter de campo, representado por uma figurinha aleatória. “os refletores cortam a faixa de sol e fazem uma sombra”, diz ele. Antes e depois do jogo, estas figurinhas alternativas estão posicionadas ao redor do tapete. São os cinegrafistas e os repórteres.

Antes do jogo, a chegada dos times. Uso um guia de ruas. Após o jogo, monto um vestiário com réguas, e faço as entrevistas. E fim.

Um jornalista é jornalista desde os 12 anos. Um relato como esse pode significar que a criança queria é ser jogador de futebol. Mas não. A linha oculta aponta para o prazer periférico do trabalho coadjuvante e ativo, a cobertura, o acompanhamento, os trejeitos e vícios do trabalho – no caso, de uma transmissão futebolística.

Nas Olimpíadas de 2000, ficava acordado esperando um flash de 15 segundos, no meio do intervalo comercial da Band, com uma câmera estática mostrando a paisagem urbana. Não havia nada de mais, mas aquela não-notícia cotidiana me significava mais que os jogos em si. Era a cidade, a vida ao redor do evento.

O jornalista acaba se apegando ao bastidor, ao caminho que ele percorre de forma oculta. Há delícia em ser paralelo ao fato. Tem um fascínio periférico no jornalista, que vem lá de trás. O jornalista tenta traduzir a realidade, dar uma versão atrativa do fato, e isso exige uma visão maior que a dos olhos. Isso é tudo que se faz quando se é menino, dentro do seu mundo que, não fosse tão minuciosa capacidade criativa, estaria fadado ao coisa-alguma, à chatice solitária.

Será que todo menino é um jornalista? Será que as garotas que brincam com a Barbie imaginam os Paparazzis?

A gente tem maneiras simples e educativas de perceber como a presença da imprensa é ativa em nosso corpo coletivo. Desde pequeno a gente decifra as idiossincrasias dos narradores da TV, capta o “Boa Noite” do jornal. Só alguns, entretanto, tratam de, involuntariamente, humanizar essas influências, e projetá-las em seu próprio espaço solitário de um modo que ele vira um espectador de seus próprios experimentos imaginários, ao invés de, como seria o normal, ser o astro, o herói, o imortal de seu enredo de ações criativas. Estes têm grande chance de virar jornalistas.

E daí você consegue explicar como o time que eu torço perdeu para a Inter de Limeira, no tapete do meu quarto, num jogo controlado inteiramente por mim, onde só eu estava interessado. Eu não era o camisa 10 do Palmeiras, nem o árbitro do jogo. Eu era o narrador, e o repórter, e o cinegrafista.

3 comentários:

Felipe Mendes disse...

Soberbo.

Anônimo disse...

Muito bom! Excelente! Emocionate...

Abraços,

Rafael

Saulo disse...

Muito bom o texto.